quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

"Longe como o meu querer" Marina Colasanti

Regressava ao castelo com suas damas, quando do alto do cavalo o viu, jovem de longos cabelos à beira de um campo. E, embora fossem tantos os jovens que cruzavam seu caminho, a partir daquele instante foi como se não houvesse mais nenhum. Nenhum além daquele.
À noite, no banquete, não riu dos saltimbancos, não aplaudiu os músicos, mal tocou na comida. As mãos pálidas repousavam. O olhar vagava distante.
− Que tens, filha, que te vejo tão pensativa? − perguntou-lhe o pai.
− Oh! pai, se soubesses! − exclamou ela, feliz de partilhar aquilo que já não lhe cabia no peito. E contou do rapaz, do seu lindo rosto, dos seus longos cabelos.
O que o pai pensou, não disse. Mas no dia seguinte, senhor que era daquele castelo e das gentes, ordenou que se decapitasse o jovem e se atirasse seu corpo ao rio. A cabeça entregou à filha em bandeja de prata, ele que sempre havia satisfeito todas as vontades.
− Aqui tens o que tanto desejavas.
E sem esperar resposta, sem querer procurá-la em seus olhos, retirou-se.
Saído o pai, a castelã lavou aquele rosto, perfumou e penteou os longos cabelos, acarinhou a cabeça no seu colo. À noite pousou-a no travesseiro ao lado do seu, e deitou-se para dormir.
Porém, no escuro, fundos suspiros barraram a chegada do seu sono.
− Por que suspiras, doce moço? − perguntou voltando-se para o outro travesseiro.
− Porque deixei a terra arada no meu campo. E as sementes preparadas no celeiro. Mas não tive tempo de semear. E no meu campo nada crescerá.
− Não te entristeças − respondeu a castelã. − Amanhã semearei teu campo.
No dia seguinte, chamou sua dama mais fiel, pretextou um passeio, e saíram ambas a cavalo. Apearam no campo onde ela o havia visto a primeira vez. A terra estava arada. No celeiro encontraram as sementes. A castelã calçou tamancos sobre seus sapatinhos de cetim, não fosse a lama denunciá-la ao pai. E durante todo o dia lançou sementes nos sulcos. À noite deitou-se exausta. Já ia adormecer, quando fundos suspiros a retiveram à beira do sono.
− Por que suspiras, doce moço, se já semeei teu campo?
− Porque deixei minhas ovelhas no monte, e sem ninguém para trazê-las ao redil serão devoradas pelos lobos.
− Não te entristeças. Amanhã buscarei tuas ovelhas.
No dia seguinte, chamou aquela dama que mais do que as outras lhe era fiel e, pretextando um passeio, saíram juntas além dos muros do castelo. Subiram a cavalo até o alto do monte. As ovelhas pastavam. A castelã cobriu sua saia com o manto, não fossem folhas e espinhos denunciá-la ao pai. Depois, com a ajuda da dama reuniu as ovelhas e, levando o cavalo pelas rédeas, desceu com o rebanho até o redil.
Que tão cansada estava à noite, quando o suspiro fundo pareceu chamá-la!
− Por que suspiras, doce moço, se já semeei teu campo e recolhi tuas ovelhas?
− Porque não tive tempo de guardar a última palha do verão, e apodrecerá quando as chuvas chegarem.
− Não te entristeças. Amanhã guardarei a tua palha.
Quando no dia seguinte mandou chamar a mais fiel, não foi preciso explicar-lhe aonde iriam. Pretextando desejo de ar livre, afastaram-se ambas do castelo. Os feixes de palha, amontoados, secavam ao sol. A castelã calçou os tamancos, protegeu a saia, enrolou tiras de pano nas mãos, não fossem feridas denunciá-la a seu pai. E começou a carregar os feixes para o celeiro. Antes do anoitecer tudo estava guardado, e as duas regressaram ao castelo.
Nem assim manteve-se o silêncio no escuro do quarto da castelã.
− Por que suspiras, doce moço? − perguntou ela mais uma vez. − Por que suspiras, se já semeei teu campo, recolhi tuas ovelhas e guardei tua palha?
− Porque uma tarefa mais é necessária. E acima de todas me entristece. Amanhã deverás entregar-me ao rio. Só ele sabe onde meu corpo espera. Só ele pode nos juntar novamente antes de entregar-nos ao mar.
− Mas o mar é tão longe! − exclamou a castelã num lamento.
E naquela noite foram dois a suspirar.
Ao amanhecer a castelã perfumou e penteou os longos cabelos do moço, acarinhou a cabeça, depois a envolveu em linhos brancos e chamou a dama. Os cavalos esperavam no pátio, o soldado guardava o portão. − Vamos entregar alguma comida para os pobres − disseram-lhe. E saíram levando seu fardo. Seguindo junto à margem, afastaram-se da cidade até encontrar um remanso. Ali apearam. Abertos os linhos, entregaram ao rio seu conteúdo. Os longos cabelos ainda flutuaram por um momento, agitando-se como medusas. Depois desapareceram na água escura. De pé, a castelã tomou as mãos da sua dama. Que lhe fosse fiel, pediu, e talvez um dia voltassem a se ver. Agora, cada uma tomaria um rumo. Para a dama, o castelo. Para ela, o mar.
− Mas é tão longe o mar! − exclamou a dama.
Montaram as duas. A castelã olhou a grande planície, as montanhas ao fundo. Em algum lugar além daquelas montanhas estava o mar. E em alguma praia daquele mar o moço esperava por ela.
− A distância até o mar − disse tão baixo que talvez a dama não ouvisse − se mede pelo meu querer.
E esporeou o cavalo.
(Marina Colasanti)

Linda foto da minha linda! Mônica Bermond e a outra Mônica!
Mais sobre o texto numa próxima postagem... Suspirem aí por mim... :)

Buenas!

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